sábado, 1 de outubro de 2022

O Mito e a História na Criação

 


Apresentação da obra O Mito e a História na Criação: uma análise literária de Gênesis 1.1-2.3, de Airton Williams Vasconcelos, que defende que a perícope do texto da Criação não é mitológica, mas uma História Querigmática, a qual a função seria dar identidade ao povo do Êxodo. Escrita por Moisés no período da libertação dos cativos do Egito, Gênesis 1.1-2.3 cumpre a função de teologia salvacionista também para o Novo Testamento.

A Cosmogonia de Gênesis 1.1-2.3 possui para a tradição judaico-cristã uma afirmação literal de toda sua narrativa. No Antigo Testamento, os textos são fundamentados com base na literalidade do evento. Nisso, Adão está relacionado a dinastia de Davi assim como Israel está relacionado à história do mundo. Com efeito, Adão é entendido como uma personagem histórica (cf. 1Cr 1.1-4: Adão, Sete, Enos,Cainã, Maalalel, Jarede,Enoque, Metusalém, Lameque,Noé, Sem, Cam e Jafé.). No Livro de Jó, o poeta em Jó 31.33 entende que a ação do protagonista é uma semelhança com o que Adão houvera feito no Paraíso por vergonha a Deus (cf. Jó 31.33 e Gn 3.8-10). O profeta Oseias (Os 6.7) alerta o povo para a não fidelidade para com Deus, tal feito por Adão. O Salmo 8 testifica que o domínio do mundo foi dado ao homem correlacionando com a narrativa de Gn 1.26-30, demonstrando que a teologia israelita está embasada nos eventos do Gênesis, entendido pelos profetas, cronistas e poetas como sendo um documento histórico.

Nos textos do judaísmo, do cativeiro babilônico (487 a.C) à dominação romana (63 a.C), temas como formação familiar (To 8.6,7) são baseados no Gênesis e a descendência humana se deve a Adão, Sem e Set (Eclo 16.24-17.10; 33.10;49.16). Para a literatura apocalíptica, a ação punitiva de Deus para com o mundo se daria pela falta de Adão em desobediência ao único mandamento dado a ele. A ideia de que foi pela falta de Adão que toda a humanidade sofreu está no texto de Baruc Sírio (54.15) o qual Adão foi o primeiro dos pecadores e seu pecado atormenta toda a humanidade. Com isto, temos que a tradição religiosa do judaísmo aceita por literal a narrativa de Adão.

Na redação neotestamentária, os autores tinham a finalidade de explicar o cumprimento das promessas redentoras. Para isso, a Criação deveria ser explicada hermeneuticamente à Encarnação. Com isso, Lucas (Lc 3.23-38) explica que Jesus é o filho de Deus descendendo de Adão, representando toda a humanidade. A tentação, porém, que venceu Adão, foi vencida por Cristo. A descendência elencada em Gênesis 5 e a literalidade de Gênesis 1-2 foi a base para que o leitor entendesse a função histórica de Jesus. Para a teologia paulina, há uma dependência ao entendimento que a tradição judaica. Os relatos estão baseados na tríade criação, queda e redenção. No ensino aos romanos (Rm 5.12-21), Adão é literalmente homem e os eventos de Gênesis são evidentemente históricos. Adão foi o responsável pela morte na história humana e Jesus, também homem, é o redentor. Esta dialética também está no ensino aos Coríntios (1Cor 15. 22,45), a ressurreição está contextualizada com a natureza do último Adão, Jesus. O texto de 1 Tm 2.13,14, comentando Adão e Eva, também contextualiza Gn 1-2 historicamente. O Apocalipse neotestamentário, fundado na tríade criação, queda e redenção, tem na redação de Judas (1.14) a correlação do Adão histórico com as ações punitivas de Deus na história, baseado na literalidade de Gn 1-2. Para João, concebendo uma teologia apocalíptica baseada na estrutura judaica, mas referenciada em Cristo, fonte traditiva do Jardim do Éden é utilizada para que se creia numa restauração terrena histórica. A salvação em Jesus Cristo está, para o autor apostólico, interpretada hermeneuticamente à cosmogonia do Gênesis.

No período pós-Apostólico, os maiores inimigos da fé cristã, os gnósticos, tentavam deturpar a compreensão tradicional da leitura da Criação, entendendo eles que haveria uma dicotomia entre o Deus do Velho Testamento e o Deus do Novo Testamento. Os cristãos para combater a heresia reforçaram a doutrina da Criação. A integração entre os Testamentos foi defendida por Irineu de Lião, sendo a Criação entendida como parte do plano divino de salvação. A explicação é a de que Gn 1-2 tem a função doutrinária soteriológica em Cristo. A Criação foi uma dádiva de Deus e foi boa pois deu ao homem a imortalidade, mas foi Adão que por desobediência perturbou a humanidade. Mas em Cristo a Criação é restaurada, o Logos encarnado. Nisto, a Criação é de premissa positiva. A historicidade da Criação também é defendida por Tertuliano e Orígenes, que não alegorizavam Gn 1-2, tampouco o fez Agostinho, que entendia ser esta a explicação para o mal como forma de decisão do homem. Nenhuma escola de pensamento da patrística negava a historicidade da Criação e dela fizeram parte da crença cristã.

Na Idade Média predominou o método alegórico, porém Gn 1-2 continuou sendo interpretado como fonte histórica, sendo reafirmado por Gregório Magno, estudioso de Agostinho e Jerônimo, entendendo o pecado de Adão sendo a condenação para todos os homens ao pecado. No âmbito geral, predominou a antropologia agostiniana da responsabilidade de Adão na inclinação do homem ao pecado. Durante o Renascimento, de forte apelo antropocêntrico, os Reformadores, nas pessoas representativas de Lutero e Calvino, não duvidaram da historicidade de Gênesis.

As dúvidas da historicidade da Criação se deram no Iluminismo, com o entendimento de que que o texto fosse subordinado a métodos de estudo exteriores à tradição de fé. O denominado racionalismo está simbolizado na edição do Discurso do Método (1636), cujo o autor, Descartes, afirma que a razão deve confirmar o dogma que era necessário a comprovação para tirar a dúvida dos fatos. O contexto dessa demanda está confusão das multiplicidades culturais pós Reforma e Renascimento. Porém, a Bíblia foi evidenciada por Baruch Spinoza, do Tratado Teológico-político (1670), desafiando para que a autoridade bíblica devesse ser avaliada através do estudo baseado nas pesquisas da cultura dos autores, incluindo a dúvida na canonicidade dos textos. No ano de 1678, Richard Simon publica A História Crítica do Antigo Testamento, com os cinco princípios que desafiam a inspiração verbal da Bíblia e sua autoridade: o texto bíblico está condicionado a seu tempo, os fatos bíblicos devem ser analisados independente do seu autor, a Bíblia é pluralista com vários autores, os originais da Bíblia estão perdidos, o literalismo bíblico depende da leitura crítica. Estas publicações retiram da Bíblia sua inviolabilidade moral para a expor aos campos dos métodos seculares, incluindo a história, a psicologia, etc.

O Iluminismo desmerece a tradição, para autentificar a crença em Deus elaborou-se o Deísmo, movimento inglês que aceita a existência de Deus, mas sem revelação ou milagres. A religião deve ser natural, racional e universal. Nisso, o pecado de Adão e a redenção tornaram-se mitos. No século XVIII, o cristianismo foi subordinado ao racionalismo, sendo justificado apenas pela sua mensagem moral e ética, com sua teologia humanizada baseada em ideias geralmente aceitas. As interpretações são de cunho meramente moralistas, sendo os textos bíblicos apenas um antepassado do desenvolvimento humano.

Na Alemanha, o criticismo considerou que a narrativa de Gênesis fosse de ambientação mitológica, pois descreviam acontecimentos naturais sem qualquer explicação das causas dos fenômenos de modo racionalista, pois o conhecimento era limitado e a experiência restrita. Por exemplo, a vegetação existia antes da criação do sol. Para os autores, o mito é uma saga e distinta da história. O mito é baseado em eventos sem testemunhos, atribuídos a divindades, ações fruto do pensamento e sem explicações naturais. O texto bíblico também é desafiado literariamente, pois Elohim eram deuses que foram redimensionados para Yahweh.

TEXTO E ESTRUTURA LITERÁRIA DE GÊNESIS 1.1-2.3

O texto originalmente não estava dividido com capítulos, títulos e versículos. A edição dos textos faz com que a ideia central mude. O texto dedicado para a Criação completo é Gn 1.1-2.3 pois é desta forma que a tradição da Mishná e da Septuaginta ofertam a leitura correta. A estrutura textual está descrita numa ordem padronizada no que a crítica denomina de paralelismos narrativos, os três últimos dias estão relacionados com os três primeiros dias: 1º- Introdução = E disse Deus/ 2º- Ordem = Haja, produza, etc. / 3º Conclusão = E assim se fez / 4º Julgamento = E viu que era bom / 5º tempo sequencial = E houve tarde e manhã. Nos três primeiros dias: 1º Dia = Luz, dia e noite / 2º Dia = Água e Atmosfera, separando águas das águas / 3º Dia = Terra e Vegetação, terra, vegetação, árvores. Nos três outros dias: 4º Dia = Luz, Sol, Lua, estrelas / 5º Dia = Água e Atmosfera, peixes e pássaros / 6º Dia = Terra, vegetação e o Homem. Este é o fim da perícope da Criação.

GÊNESIS 1.1-2.3, MITO, HISTÓRIA E SITZ IM LEBEN FORMATIVO

O mundo acadêmico hodierno não aceita unanimemente a narrativa de Gn 1.1-2.3 literalmente, a intenção do autor do texto está fadada à compreensão religiosa e não de ciência. Esta ideia está no preconceito de que a narrativa considerada fantasiosa esteja nos domínios da mitologia. Este julgamento é moderno e não está na intenção dos autores dos textos que estavam inseridos no mundo cultural israelita. Com isso, os autores do Velho e do Novo Testamento não tendiam a fundamentar seus conceitos e ideias em invencionices ou ficção. A antropologia e a sociologia, na modernidade, tendenciosamente, definem mito àquilo que está relacionado aos deuses e as lendas às sobrenaturalidades de seres mortais. Este seria um pressuposto teórico destas ciências modernas.

Os mitos mesopotâmicos falam de poemas de criação cujos elementos seriam reino primordial, deuses que procriam, vários atos de criação divinos. A epopeia de Gilgamesh está no âmbito de mito mesopotâmico, a saber: mar primevo, Namu; deus masculino An e feminina Ki, que são os pais do deus-ar Enlil, que gerou deus-lua Nana, que gerou o deus-sol Utu, o homem é criação dos deuses Namu, Ninma e Enki, deus da sabedoria. No poema Enuma Elish, outro mito mesopotâmico, haveria no início no que se chama de águas dos caos, dois deuses Apsou e Tiamat, casal que deu prole de deuses. No entanto, Tiamat decide extinguir sua prole, sendo derrotada pelo chefe do panteão, Marduc, e dela se cria o mundo. Esta modalidade de literatura é ausente no mundo israelita, não havendo originalidade de mitos. No mundo mesopotâmico os deuses são frutos da procriação e a matéria é eterna. Para Gênesis 1.1-2.3, a matéria é criada ex-nihilo e Yahweh é o criador de tudo e autoexistente. No mito cananeu, por exemplo, o deus criador foi gerado por procriação por uma substancia preexistente, o desejo. Os mitos são poesias com características diferentes daquilo apregoado pela literatura de relato histórico da cultura israelita. A linguagem alegórica inexiste em Gn 1.1-2.3, não sendo poesia. As repetições que aparecem na estrutura de Gênesis não são refrãos à moda de poesia litúrgica, mas técnica de memorização baseada em reiterações.

A cosmogonia de Israel está baseada no gênero literário prólogo Histórico-Querigmático. Para este estudo, temos que compreender que a História não é objetiva pois sua escrita depende muito de quem narra e a apresenta. O modo de interpretar, a capacidade ou intencionalidade de selecionar material, faz o historiador moldar sua narrativa da história. A história depende, enfim, do propósito do narrador, defensor de alguma ideologia. A historiografia de Israel é História Ideológica, com isso o passado é moldado para influenciar gerações futuras a favor de um grupo tendencioso a uma causa. A ideologia dos narradores era religiosa e nacionalista, a nação escolhida. A religião histórica revelada defende a doutrinação da existência e finalidade do povo de Deus. O relato da criação registra intervenções de Deus na história. A história israelita é linear, diferente de outros povos fundados em interpretações da divindade e que não possuem finalidade histórica. O tempo está na descrição dos eventos cronologicamente testemunhando o clímax e a exclusividade monoteísta.

A narrativa monoteísta não compara criador e criatura e por isso o mito é rejeitado. A utilização de material pagão ou de mito ofenderia a revelação divina, entendida não como declaração de fé ou mera poesia. A criação do Cosmo por Deus não está relacionada a existência do caos, tudo o que existe é da bondade de Deus e, por isso, bom. Não há dependência do ideário mesopotâmico na textualização israelita.

A finalidade do texto está relacionada com a identidade do povo israelita. Os críticos especulam que o autor de Gênesis seja datado da era pós-exílio babilônico no século VI a.C, fonte denominada P, ou sacerdotal. A problemática desta afirmação está na descontextualização dos elementos ou materiais que são comuns ao período do Êxodo e não a posteriormente. A ausência do elemento Templo, por exemplo, refuta a tese que o texto seja jerosolimitano. Por outro lado, o Tabernáculo, a Arca, os Dez Mandamentos, Cidades de Refúgio, não fazem parte da literatura pós-exílio. A afinação do texto está para com a relação entre Patriarcado e povo, peregrinação e consolidação da identidade nacional e espiritual.

Outro elemento a favor da refutação da literatura pós-exílio é a familiaridade do autor com a cultura egípcia, incluindo nomes de monarcas, aludindo que o autor de Gênesis seria o mesmo de Êxodo e não palestinense. Inclusive os deuses egípcios parecem aparecerem como pano de fundo. Os deuses cósmicos são menorizados como sendo criaturas de Deus: Num, Oceano, água primordial; Nut, Céu, deusa arqueada em abóboda, Ket, terra; Rá, Sol; Tot, Lua; Sótis e Órion, estrelas; animais encarnações de deuses; foram todos criaturas de Deus.

A comunidade recipiente desta mensagem é de povo liberto do cativeiro egípcio. Este povo de complexidade mista, sendo escravos egípcios (Lv 24.10), midianitas (Jetro, sogro de Moisés Ex 18; 10.29-32), edomitas (Calebe, Js 14.13,14), e os descendentes de Jacó, as Doze Tribos. A diversidade destes povos fez com que houvesse o pacto sinaítico unificando a nação, sendo o sinal visível a Arca Sagrada construída por Moisés e ficando na tenda. A eleição deste povo pela aliança entre Deus e Abraão é o foco da finalidade de Gn 1.1-2.3.

A diversidade do povo tendia ao ecletismo e ao politeísmo. A diversidade de rituais e mitos fez com que a libertação fosse um chamado à adoração ao Criador (Ex 3.18; 5.3) no deserto, a forma cúltica agradável. O material catequético deveria excluir elementos míticos ou mitômanos, senão não haveria credibilidade no seu apelo. O Pentateuco, denominado Torá ou autoridade de crença e culto, tem no gênesis a finalidade de fundamentar a coesão e a unidade nacional, com origem em Abraão e sua aliança com Deus. A natureza auto suficiente e existente de Deus aliado ao monergismo de sua obra o faz superior a toda mentalidade politeísta, e sem politeísmo não existe mito. A criação do homem por Deus relaciona Criador e criatura de modo pessoal e não por necessidades rituais. O pacto de Deus com a humanidade é eterno. A aliança com Abraão, após Adão e Noé (Gn 9.1-3), seria para o autor, Moisés, a historicidade necessária para dar credibilidade da fé.~





Bibliografia

BARBOZA, Airton Williams Vasconcelos. O Mito e a História na Criação: uma análise literária de Gênesis 1.1-2.3. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.


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